Sign In Forgot Password

Shabat da Jornada 2018

Talvez vocês tenham reparado, ao lado de fora, uma pequena mostra fotográfica da última Jornada Social para o Haiti. Para quem ainda não sabe, a Jornada Social é um projeto do Reshet, o núcleo de jovens adultos da Shalom que, em parceria com a Fundação Arymax, há 4 anos possibilita uma de experiência de intercâmbio social junto a comunidades ao redor do mundo. Esse projeto se ancora na vontade de compartilhar uma experiência transformadora que possa provocar reflexões e mudanças na vida de cada um dos participantes. E claro, sendo a Jornada Social orientada pelo princípio de Tikun Olam, queremos que os efeitos dessas mudanças transbordem as esferas pessoais para alcançar toda a comunidade.

A Jornada Social tem uma característica muito interessante: ela se agarra às nossas questões mais íntimas. Não importa o momento de vida, as alegrias, indagações e medos que cada um tenha, não importa qual seja a natureza do trabalho ou o destino. A jornada nos toca, invariavelmente, nos nossos pontos de maior sensibilidade. Ela, inclusive, traz à tona questões que poderiam estar escondidas ou adormecidas, questões com as quais vínhamos evitando lidar ou apenas questões em relação às quais não sabíamos o que fazer. E como esse processo é absolutamente individual, compartilho com vocês a minha experiência, sobre a qual posso falar.

Quando comecei a dar aulas de bar e bat mitsva aqui na Shalom eu estava me preparando para prestar concursos públicos para ser Defensora Pública. Me formei em direito e cultivei uma relação muito boa com ele. Mas o tempo dedicado ao ensino e à advocacia colaborativa junto à Defensoria Pública da União começaram a bagunçar a minha relação com essas duas áreas. Não porque o meu amor pelo direito diminuísse, mas porque o crescimento do meu amor pela educação começou a me balançar.

A minha primeira Jornada foi para a Ilha de Marajó e lá tudo se encaixou. 3 anos de dúvidas que se organizaram e deram luz à uma resposta clara, mas não menos difícil: mesmo amando o direito, a minha vocação era a educação. A Jornada me permitiu sentir essa resposta no corpo. Na volta, marquei um almoço com a minha mãe, para conversarmos sobre essa decisão - que, embora fosse clara, me assustava e me fazia sentir medo por estar, de alguma forma, decepcionando a minha família, depois de tantos anos de investimento. Marquei o almoço com ela porque ela sempre incentivou que eu me dedicasse à educação. Mas ela armou uma armadilha - talvez pressentindo o que viria - e chamou meu pai para o almoço. Chorei de nervoso, compartilhei minhas sensações e minhas angústias e recebi apoio incondicional para seguir pelo caminho que finalmente tinha encontrado. Hoje brinco que ao invés de 9 meses, gestei por 9 anos o projeto profissional de educação, que completou seu tempo dentro de mim e nasceu graças às contrações provocadas pela Jornada.

Este é o primeiro shabat do mês de Nissan, e começamos a nos preparar para Pessach. Todos os anos refletimos sobre escravidões, sobre lugares estreitos e sobre as responsabilidades que vem com a amplidão da liberdade. Mas peço licença para me adiantar na cronologia e seguir até o deserto, onde passamos 40 anos. A riqueza da experiência no deserto é tamanha que a Torá dedica um livro inteiro para falar sobre ele. Um livro inteiro que não fala de um lugar geográfico, mas da travessia.

Não por acaso, um dos maiores autores da literatura brasileira, João Guimarães Rosa, se aproxima dessa narrativa e também dedica um livro inteiro para falar sobre a travessia. Uma que não se inicia entre as águas abertas do mar vermelho, mas que chega às veredas do Grande Sertão. E essa narrativa diz: “A gente tem que sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro”.

O sertão e o deserto são travessias que impõe condições de existência muito áridas. E quando João Guimarães Rosa propõe que devemos tomar conta do sertão, passo a seguinte pergunta: de que modo cuidamos da vida enquanto fazemos essa travessia tão difícil? É preciso estar muito consciente para atravessar, mas de que forma alcançamos essa consciência?

A beleza da nossa tradição judaica nos faz notar que apesar da travessia ser uma experiência individual, sempre existe a comunidade, fortalecendo a esperança de que atravessaremos o lugar difícil, em direção à terra prometida. O grupo que viajou ao Haiti se deparou, de muitas maneiras, com uma existência de escravidão, e a volta para casa não se resume ao tempo de vôo e ao reajuste de horário. A Jornada Social tem esse nome porque as experiências vividas pedem que nós atravessemos o deserto, que aprendamos com a travessia e cheguemos em casa transformados. Que bom ter uma comunidade que permite que seus jovens vivenciem suas travessias com apoio, para que possamos chegar em casa transformados, prontos para integrar a coletividade, trazendo tudo que aprendemos. Obrigada Shalom, por cuidar do nosso deserto.

Convidamos vocês para olharem as fotos lá fora. Elas podem contar um pouco sobre a nossa ida ao Haiti. Cada um dos participantes que está aqui também pode contar sobre a travessia que percorreu ou que vem percorrendo. Mas assim como a nossa tradição, ano após ano, nos coloca no Egito e depois nos conduz ao deserto, João Guimarães Rosa alerta: "O sertão está em toda parte”.

Thu, 28 March 2024 18 Adar II 5784