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Shabat Jornada 2019

Esse é o 5o Shabat da Jornada Social e antes de mais nada nós queremos agradecer por mais uma oportunidade tão incrível. Agradecemos à comunidade e à Fundação Arymax, por permitirem que a Jornada Social nascesse e que siga se desenvolvendo. Agradecemos aos 88 doadores que permitiram a realização dos trabalhos no quilombo e que presentearam Santa Rosa com essa colaboração. Obrigada, Cláudio, pela exposição de fotos. E nossa imensa gratidão às pessoas do Quilombo Santa Rosa dos Pretos, que nos receberam dentro de casa e nos ensinaram tanto.

Talvez alguns de vocês se lembrem. No ano passado, o Shabat da Jornada Social foi exatamente na mesma semana, com um dia de diferença, mas estávamos entrando no mês de Nissan e começando os preparativos para Pessach. E por isso, falamos sobre escravidões, sobre lugares estreitos e sobre a travessia para a liberdade. Nós sentíamos que, apesar de termos aterrissado, a volta do Haiti se mostrava uma travessia maior do que apenas o retorno para casa. A Jornada Social tem esse nome porque as experiências vividas pedem que nós atravessemos um deserto, que aprendamos com a travessia e cheguemos em casa transformados.

E mais uma vez, apesar da travessia se mostrar uma experiência individual, voltamos para casa, para a nossa comunidade, e compartilhamos nossas histórias para que continuemos nos fortalecendo e caminhando juntos em direção à terra prometida.

Só que nesse ano, por um ajuste de calendários lunar e solar, não estamos nos preparando para Pessach, e sim para Purim! A festa de máscaras e fantasias, na qual escutamos a leitura da Meguilá, comemoramos a vitória do bem sobre o mal, mas não só. Quando falamos das máscaras de Purim, somos desafiados a olhar o que está por trás das máscaras, afinal, a simples existência delas pressupõe uma realidade por detrás. E esse desafio traz consigo perguntas difíceis: Quais são essas realidades ocultas, e sob quais fachadas elas estão? Quando essas fachadas se tornam atraentes ao ponto de ignorarmos o que está por trás? Ou até, quando não sabemos mais discernir entre uma coisa e outra?

Como se essa investigação já não fosse bastante trabalhosa, damos mais um passo. Porque quando nos fantasiamos em Purim, a brincadeira também nos leva a olhar para a nossa própria vida a para os aspectos dela que ficam ocultos.

A Jornada Social cumpre  esse papel, de certo modo. Não porque vestimos "fantasias" de Jornada, mas porque subvertemos nossa realidade, suspendemos algumas das nossas máscaras cotidianas, para desvendar outras narrativas.

Em janeiro fomos para o Quilombo Santa Rosa dos Pretos. Este é um quilombo que se insere dentro de um território quilombola, na zona rural do Maranhão, entre os municípios de Itapecuru Mirim e Santa Rita. Fomos recebidos pela família da Dona Anacleta, dentro de sua própria casa. Foi na cozinha dela que fizemos nossas refeições, junto com suas filhas e netos. Conhecemos o quilombo e os seus pés de frutas, comemos 4 tipos de manga diferentes, maracujá selvagem e nada - aparentemente nada - é melhor do que maracujá selvagem. Fizemos café do coco de babaçu e vivemos o drama de saber que nenhum café será tão gostoso quanto aquele.

A Dona Anacleta compõe uma espécie de liderança do quilombo, juntamente com a Dona Dalva, o Sr, Elias e o Seu Libânio. Conhecer o quilombo passava pelas oportunidades maravilhosas de escutá-los, comer a comida da Dona Dalva e dançar com eles. Mas a história que melhor ilustra a nossa chegada lá é a história do Seu Pedro. Depois de chegarmos na casa da Dona Anacleta, o próximo passo era visitar Dona Dalva. Mas enquanto caminhávamos pelo quilombo, explicaram que a Dona Dalva estava recebendo o Seu Pedro e perguntaram se nós queríamos conhecê-lo. Nós não queríamos incomodar se ela estava ocupada com visitas, mas nos disseram que estava tudo bem se nós quiséssemos ir. Chegamos em uma das casas do quilombo e entramos em um pequeno quartinho. Lá estavam o Seu Pedro e Seu Leguinha, bebendo cerveja e fumando cigarros, sentados ao lado de uma mesa cheia de estátuas de entidades da umbanda e santos, alguns deles negros, e velas. Para alguns, a situação ficou clara no mesmo instante, para outros, só quando saímos de lá. A visita não era na casa de Dona Dalva, mas NA Dona Dalva e na Dona Terezinha. Ambas estavam incorporando os visitantes. Entre os goles de cerveja, Seu Pedro explicou como era importante ter respeito pelo seu cavalo - Dona Dalva. Porque ele gostava muito de beber e fumar, ao contrário de Dona Dalva, que detesta cigarros e fica muito brava com ele quando ele vem e fuma.

Aprendemos que receber uma entidade chama "cair" e que maracujá que se come no mato não se conta em casa. Aprendemos a colocar piso e, apesar do engenheiro do grupo alertar constantemente para a necessidade de tempo entre o assentamento do piso e a colocação rejunte e, depois, do tempo para o rejunte secar até que pudéssemos andar sobre o piso, o quilombo organizou uma roda de Tambor de Crioula no mesmo dia em que acabamos de colocar o piso da igreja.

O Tambor de Crioula é uma dança de matriz africana típica dos quilombos do Maranhão, em louvor a São Benedito, um dos santos mais populares entre os negros. O Tambor pode ser feito para pagar promessa, para comemorar festa de aniversário, nascimento, chegada ou despedida de parentes e amigos, até por comemoração pela vitória de time de futebol.

O nosso tempo lá foi preenchido por experiências que parecem histórias fantásticas. Nós rimos e choramos juntos, de alegria e de tristeza. E essas histórias precisam ser contadas por cada um de nós, então deixo o convite para que vocês todos venham conversar com o grupo durante o kidush.

As histórias não são contadas só por diversão e a tradição judaica nos ensina isso muito bem. Dependendo da situação, uma história pode ser um verdadeiro remédio. Existe um livro chamado O Dom da História - Uma Fábula sobre o que é Suficiente. E, nesse livro, a autora usa a expressão "farmácia das centenas de histórias que me ensinaram". Ela diz que as histórias podem ser usadas para ensinar, para corrigir erros, para iluminar, auxiliar a transformação, curar ferimentos, recriar a memória. As histórias cuidam da vida.

E com isso voltamos para Purim. Falávamos das máscaras que ocultam realidades ao nosso redor e nossas. Do desafio de revelar aquilo que está oculto, e investigar as razões pelas quais, conscientemente ou não, acabamos dividindo aspectos entre aqueles que mostramos e escondemos. Mas aprendi, com uma amiga muito sábia, que existe mais um passo nessa reflexão: A percepção de que esses aspectos, essas realidades, não estão separadas.

Nós elaboramos tanto a ideia das máscaras, nós construímos tantos muros, criamos tantas divisões analíticas que acabamos vivendo com a impressão de podermos separar realidades, de podermos nos separar uns dos outros. Mas a verdade é que tudo está conectado. A nossa história e a história de Santa Rosa dos Pretos não são realidades separadas. Nós estamos aqui porque eles estão lá e eles estão lá porque nós estamos aqui. A nossa trajetória não é uma herança dos nossos pais e avós apenas. A nossa comunidade não partilha só da herança judaica, seja ela histórica, cultural ou religiosa. A nossa história não se cruza com a história do quilombo quando nós vamos para lá. A nossa história é a mesma. E não pelas similaridades, não pelo fato de que uma narrativa essencial do quilombo pudesse se confundir com a narrativa essencial de pequenas comunidades judaicas como a nossa. Mas porque compartilhamos, inevitavelmente, a mesma realidade.

Só compreendendo que nós não somos visitantes de outras realidades, entendendo que o que revelamos e ocultamos, o que vivemos e o que ignoramos estão vitalmente conectados é que podemos caminhar em direção a uma responsabilidade verdadeiramente comunitária. Nós somos parte do Quilombo Santa Rosa dos Pretos tanto quanto eles são parte de nós.

Shabat Shalom

Fri, 26 April 2024 18 Nisan 5784